"Era 2008. Lembro que a gente tinha recém lançado no 'Redenção', e ainda estávamos naquele deslumbre com o lance de se fazer parte de uma grande gravadora, ainda desacostumado com essa coisa de observar adultos fazendo reuniões para discutir os rumos e caminhos da minha brincadeira de adolescente.
Teve o negócio do disco sair, e antes mesmo de o clipe de 'Uma Música' - o primeiro single, escolhido numa reunião de adultos - ter ficado pronto, o Pedro Cupertino tinha recém se afastado da banda, e aí ainda me ligam dizendo que eu ia tocar num negócio muito sério com Chitãozinho & Xororó e o escambau. Era coisa demais para a minha cabeça. O resultado todo mundo viu, surgiu uma improvável e bonita amizade entre duas entidades totalmente diferentes e quase-opostas-ou-nem-tanto em sua musicalidade, e blá, e blá, e blá. Isso ergueu a Fresno a um nível de responsa nunca antes experimentado.
Aí pintaram as indicações para o Video Music Brasil, o VMB. O público tinha nos agraciado com o troféu de 'Banda Revelação' no ano anterior, e ali a gente se viu pela primeira vez na briga de cachorros grandes. Não 'briga', pois tudo acaba em cerveja, e não cachorros grandes pois eu ainda sou um cusco pesteado menor que um pinscher, perto de um povo que tava indicado com a gente para a tal categoria 'Artista do Ano'.
Num desses churrascos surreais no sítio do Chitão, a Ana Anna L. Peixoto Butler, que tinha um cargo importantíssimo na MTV, mas que eu nunca soube especificar miudamente (Diretora de Relações Artísticas, ou algo que o valha) chama todos os presentes para a sua rodinha e dispara: 'cês vão tocar no VMB, juntos, e a música vai ser "Evidências"'. Foi só mais um dos inúmeros 'então tá, então' que eu tive que dizer.
Nas semanas seguintes, o povo todo vinha me parabenizar pelas indicações, vinham com uns papos de 'esse ano é de vocês'. Nunca foi algo que eu acreditei muito, mas aos poucos a galera foi me convencendo, ao ponto de, no dia da premiação, eu estar a ponto de explodir, tamanho o nervosismo. Pela apresentação e pela grande indicação.
Tinha nem molhado o bico na cerveja (hoje sei que ela ajuda a gente a se soltar, se não consumida em excesso), e um produtor que trajava em sua cabeça um fone gigante (normalmente o tamanho do fone e o número de credenciais e pulseiras são proporcionais à importância do cara no evento) nos puxa pelo braço falando 'agora são vocês'. 'VOCÊS O QUÊ? A GENTE GANHOU, OU A GENTE VAI TOCAR?', e antes que eu terminasse de respirar fundo, pude atentamente observar o cronograma da premiação nas mãos do cara, que claramente mostravam que primeiro a gente tocaria, e depois aconteceria a premiação de Artista do Ano.
Hora dos comerciais: uma vez no palco, a gente atocha nos ouvidos o tal do in-ear, que é um fone pelo qual a gente vai se ouvir durante a apresentação. Uma vez com os fones, não se ouve nada do que acontece lá fora. Uns aquecimentos de última hora, tapas sinceros nas costas dos companheiros e, na outra vez que olhei para o palco, lá estavam os caras do Nx Zero recebendo o trofeu de Artista do Ano, pulando que nem loucos. Lembro de olhar pro produtor e falar "como assim?". "É, mudaram de última hora", ele respondeu, já gesticulando para eu me posicionar no palco e quando eu menos esperei, a contagem de baquetas já me obrigava a tocar as primeiras notas de 'Evidências'. Quando muita coisa passa pela nossa cabeça, fica difícil reter alguma coisa. Só o que ficou foi que eu tinha que tocar não porque queria, não porque deveria, e sim porque a música já tinha começado.
A gente nunca mereceu aquele prêmio (merecemos o de 2009, que está ali em cima do meu armário, acumulando poeira e com um pedaço quebrado), e a única lição que eu aprendi com esse episódio foi que a gente jamais pode se considerar pronto pra guerra antes de sentir na pele o penetrar dos estilhaços da granada. Na grande maioria das vezes, as coisas não vão sair do jeito que a gente imagina, e a gente vai ter que se virar do jeito que dá, e ninguém vai vir te perguntar se tu tá pronto antes, se tu quer água durante, ou se tu quer descansar depois. Viver é improvisar, é pintar um sorriso na cara até que a boca por debaixo da tinta imite o que o espelho te mostra.
Uma vez em casa, pra lá das sete da manhã, eu estava assistindo a reprise da premiação, em que a Luisa Micheletti perguntava pro Ben Harper quais eram as coisas que ele mais tinha gostado na música brasileira, já esperando aquele Caetano Veloso, ou aquele 'sámmbah' cheio de sotaque, e o negrão vai lá e dispara 'gostei da tal da banda Fresno'.
A Luisa olhou pra câmera com um à estampado na testa, e eu, olhei pra tevê com um sorriso estampado na cara."
Lucas Silveira